Originalmente criadas para combater o diabetes, as medicações agonistas do hormônio GLP-1 se mostraram eficazes também no tratamento de outras doenças. Liberado pelo organismo quando nos alimentamos, este hormônio está ligado à regulação do açúcar no sangue, à fome e à digestão. Além do controle da glicemia, ao “imitar” o GLP-1, um dos resultados diretos desse tipo de medicação é a perda de peso. Por essa razão, com o tempo e sob novos títulos, elas foram aprovadas também para combater a obesidade.
Desde a chegada da liraglutida, uma das primeiras versões dos agonistas do GLP-1, em meados dos anos 2000, ao lançamento de novas formulações, como a semaglutida e a tirzepatida, a partir de 2018, estudos científicos vêm demonstrando que os benefícios das populares “canetas emagrecedoras” à saúde vão além. Em outubro, por exemplo, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) sancionou o uso do Mounjaro (tirzepatida) para o tratamento da apneia do sono em adultos.
Para entender melhor de que maneira as medicações agonistas do GLP-1 atuam, direta e indiretamente, no controle de certas doenças, assim como seus efeitos colaterais, IstoÉ conversou com os endocrinologistas Cynthia Valério, diretora da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso) e subcoordenadora do Departamento de Obesidade da Sociedade Brasileira Endocrinologia Metabologia (SBEM), Karen Faggioni de Marca, vice-presidente da SBEM e Marcello Bertoluci, diretor do Departamento de Diabetes Mellitus da SBEM e coordenador do Departamento de Cardiometabolismo da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso). Confira a seguir.
Qual a relação da obesidade com a apneia?
A apneia obstrutiva do sono (AOS) é um distúrbio do sono caracterizado por interrupções repetidas da respiração durante o sono devido ao colapso parcial ou total das vias aéreas superiores. Isso ocorre porque, enquanto dormimos, os músculos da garganta relaxam e, em pacientes com AOS, esse processo pode estreitar ou fechar completamente as vias aéreas. Ao detectar a falta de oxigênio, o cérebro acorda a pessoa brevemente para adequar a respiração.
Entre os principais sintomas do distúrbio estão: ronco (alto e frequente); pausas na respiração; sonolência diurna e boca ou garganta seca ao acordar. Já os fatores de risco mais comuns são desvio de septo; pescoço largo ou estrutura craniofacial que estreite as vias aéreas; histórico familiar e, especialmente, obesidade.
“O acúmulo de gordura na região cervical é um dos principais fatores que leva ao estreitamento dessa via aérea, o que predispõe os pacientes obesos a sofrerem com a obstrução da passagem do fluxo do ar”, explica Cynthia Valério, diretora da (Abeso). A especialista explica que existe um mecanismo bidirecional entre as duas condições: por um lado, o paciente com excesso de peso, principalmente na região cervical, tem mais chance de sofrer de apneia. Por outro, a má qualidade do sono provocada pela doença também é um fator que favorece a obesidade.
Para Cynthia, a aprovação do Mounjaro para o tratamento da apneia do sono pela Anvisa é uma boa notícia. “Até então, não havia nenhum tratamento medicamentoso específico para essa complicação (apneia). Sabemos que essa medicação ainda não é acessível para a maior parte da população, mesmo assim, a recomendação rompe um paradigma”, conclui.
Doenças cardiovasculares estão aumentando, e a obesidade também
Atualmente, cerca de 14 milhões de brasileiros vivem com alguma doença cardiovascular, de acordo com o Ministério da Saúde. Ao mesmo tempo, o Atlas Mundial da Obesidade 2025 revela que 31% da população brasileira apresenta obesidade, uma relação que está longe de ser coincidência.
A obesidade, de acordo com Marcello Bertoluci, coordenador do Departamento de Cardiometabolismo da Abeso, é um dos principais fatores de risco para o surgimento de doenças cardiovasculares. “O excesso de tecido adiposo abdominal promove uma inflamação sistêmica e vascular, levando à deposição de ácidos graxos em diversos órgãos, incluindo fígado, coração e pâncreas, e possibilitando lesões que favorecem o surgimento de doenças como diabetes tipo 2, doença hepática gordurosa, rigidez arterial com hipertensão, doença renal, aterosclerose acelerada e insuficiência cardíaca”, afirma o especialista.
“Todos esses fatores vão se acumulando e somando seus efeitos deletérios até resultar em quadros clínicos graves e fatais como o infarto agudo do miocárdio, AVC e insuficiência cardíaca. A obesidade não é apenas uma das principais causas, mas também um fator mantenedor e agravante destes processos patológicos”, completa Bertoluci.
Segundo o especialista, os efeitos cardiovasculares benéficos dos agonistas do GLP-1 não parecem estar inteiramente relacionados somente à perda ponderal. Ele ressalta que diversos estudos indicam que esses medicamentos favorecem a redução do processo inflamatório do organismo e a diminuição da gordura no fígado, além da melhora dos sintomas de insuficiência cardíaca e menor mortalidade cardiovascular. “O mecanismo ainda não é totalmente compreendido, mas passa pela diminuição da resistência à insulina e dos ácidos graxos circulantes, assim como pela melhora da inflamação e aumento da microcirculação (circulação nos menores vasos do corpo)”, explica.
Como a perda de peso influencia a Síndrome dos ovários policísticos (SOP)
A SOP (síndrome dos ovários policísticos) é uma condição hormonal que se caracteriza por um desequilíbrio na produção de hormônios sexuais, em especial dos andrógenos (também chamados de hormônios masculinos). O que pode levar a alterações menstruais, infertilidade, acne, queda de cabelo e ganho de peso, entre outros sintomas metabólicos.
Como a síndrome envolve resistência à insulina e aumento de peso, os medicamentos agonistas do GLP-1 atuam em dois fatores importantes relacionados à doença. Uma meta-análise chinesa de mais de 400 artigos publicada no periódico científico Reproductive Biomedicine Online (RBMO), em 2019, avaliou a eficácia e a segurança de tais medicações em mulheres com síndrome dos ovários policísticos, comparando seus efeitos com os da metformina (medicamento antidiabético usado também contra a SOP).
Comparados à metformina, os agonistas do GLP-1 apresentaram melhora maior na sensibilidade à insulina e redução mais significativa do IMC. A conclusão é que os agonistas do GLP-1 podem representar uma boa opção terapêutica para mulheres obesas com SOP, especialmente aquelas com resistência à insulina. Porém, os autores ressaltam que as evidências ainda são limitadas.
A endocrinologista Karen Faggioni de Marca ressalta que, de fato, os medicamentos agonistas do GLP-1 podem auxiliar no controle do peso e, por consequência, no perfil metabólico das pacientes com SOP que sofrem de excesso de peso. “Não existe ainda, entretanto, dados concretos de que eles melhorariam outras manifestações clínicas de síndrome, como a redução de queda de cabelo, a diminuição do surgimento dos pelos corporais totais ou, principalmente, o hiperandrogenismo clássico da síndrome”, afirma a especialista.
A inclusão dessas medicações no tratamento de pacientes com SOP, portanto, não é a primeira alternativa. “A primeira escolha é estimular mudanças no estilo de vida, com dieta de qualidade e atividade física, além do uso da metformina”, explica. “Caso não haja resposta na perda de peso desta forma, agora podemos lançar mão dos agonistas do GLP-1”, completa.
Tratamento com agonistas do GLP-1 exige acompanhamento médico
Uma pesquisa publicada na revista Nature Medicine, em janeiro deste ano, avaliou o impacto do uso de medicamentos agonistas do GLP-1 em mais de 2 milhões de pacientes com diabetes. Dos riscos apontados, além dos conhecidos problemas digestivos (náusea, vômito, azia, constipação e dores no estômago, entre outros), o estudo citou também a gastroparesia, isto é, a paralisia do estômago.
Outro efeito colateral observado, também já apontado em estudos anteriores, diz respeito à pancreatite (inflamação do pâncreas). De acordo com a pesquisa, o uso desse tipo de medicação mais do que dobra o risco do desenvolvimento da doença em comparação com outros tratamentos contra diabetes.
Desde junho de 2025, a Anvisa tornou obrigatória a retenção de uma via da receita médica dos agonistas de GLP-1, como Saxenda, Olire, Ozempic e Mounjaro, entre outros. Medida que reforça a importância do acompanhamento médico no tratamento não apenas da diabetes e da obesidade, como também de outras doenças relacionadas que possam ser beneficiadas por meio dessas medicações.