O câncer já ultrapassou as doenças cardiovasculares como a principal causa de morte em 670 municípios brasileiros — cerca de 12% das cidades do país. É o que mostra um levantamento divulgado este mês pelo Observatório de Oncologia durante o Fórum Big Data em Oncologia, no Rio de Janeiro, com base em registros (1998 a 2023) do Ministério da Saúde. O número indica um aumento de 30% em comparação a 2015, quando o câncer era a principal causa de morte em 516 municípios. O câncer de pulmão segue como o mais letal, representando 12% das mortes, seguido pelos tumores de mama (8%) e próstata (7%).
A pesquisa destaca ainda que os óbitos por tumores aumentaram 120% desde 1998, mais que o dobro do crescimento registrado para as doenças cardiovasculares (51%). Caso não haja mudanças nas políticas públicas, os pesquisadores responsáveis pela análise acreditam que o câncer deve se tornar a principal causa de morte no país até 2029.
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Além disso, outra pesquisa apresentada pela instituição no evento avaliou os custos do tratamento do câncer no país. Os resultados mostram que os gastos com a doença aumentam significativamente a cada estágio, como era de se esperar, reforçando a importância do diagnóstico precoce. No caso do câncer de próstata, por exemplo, o custo do estágio IV é aproximadamente 9,5 vezes maior que o do estágio I.
Na semana em que se comemora o Dia Nacional do Combate ao Câncer, IstoÉ conversou com a médica sanitarista Catherine Moura, CEO da Associação Brasileira de Câncer do Sangue (Abrale) e líder do Movimento Todos Juntos Contra o Câncer (TJCC), instituição ligada ao Observatório de Oncologia, para compreender o que está por trás desse aumento. Confira.
Quais os fatores mais influenciam o avanço do câncer no Brasil?
Apesar das novas terapias, temos um cenário complexo que envolve fatores comportamentais e ambientais, além dos genéticos. Entre eles, os de maior impacto são o tabagismo, o consumo excessivo de álcool, a ingestão cada vez mais elevada de alimentos ultraprocessados, o sedentarismo e o crescimento da obesidade. Isso sem contar que ainda temos uma grande parcela da população que se expõe ao sol sem proteção, assim como pessoas que trabalham diretamente com agrotóxicos e outras substâncias cancerígenas.
Outros fatores que não podemos deixar de mencionar é o aumento de infecções que estão ligadas ao câncer, como HPV, hepatite B e C e H. pylori. A desigualdade social, que dificulta o diagnóstico precoce, também interfere. Todos esses aspectos, somados ao envelhecimento populacional, contribuem tanto para o aumento da incidência quanto da mortalidade do câncer, mesmo com tanta informação a respeito hoje.
Segundo a pesquisa do Observatório de Oncologia, o câncer pode ultrapassar as doenças do coração em 2029. O Brasil está preparado?
Estamos vivendo uma transição epidemiológica. Mas isso não está acontecendo somente aqui, o Brasil segue uma tendência global. Inúmeros países que também estão enfrentando este cenário de crescimento do câncer têm reestruturado seus planos de combate à doença de maneira prioritária. No Sistema Único de Saúde (SUS), temos hospitais oncológicos e serviços de diagnóstico, tanto em redes estaduais quanto municipais, que oferecem tratamentos especializados. A realidade, porém, é que o crescimento e a organização dessa rede não acompanha o ritmo do aumento dos casos de câncer. É difícil estruturar o sistema a tempo, por falta de recursos, mas também por problemas de gestão.
Já no setor privado, nota-se um direcionamento estratégico maior. Também há investimento em modelos de gestão de cuidado e programas de promoção à saúde e prevenção do câncer. Até por conta do próprio custo da operação e do cenário competitivo do setor. A diferença, no caso da saúde suplementar, é que poucos dados são disponibilizados ao Ministério da Saúde. Do ponto de vista de planejamento da saúde global, essa integração seria importante para um melhor entendimento tanto das causas quanto da evolução e do tratamento do câncer.
Qual o principal desafio hoje do país em relação ao combate da doença?
Ao olharmos o mapa do país, observamos uma desigualdade na distribuição dos centros de tratamento, que estão concentrados nas capitais e nos grandes centros. Em muitos municípios, há uma demora elevada no diagnóstico, o que se trata de um problema não só de estrutura, como também de processo. A dificuldade para realizar um diagnóstico precoce e encaminhar o paciente de imediato para o tratamento, em local próximo de sua residência, é um dos maiores desafios hoje.
Esse atraso pode ser fatal, além de impactar também os custos. Até porque se o paciente receber o tratamento adequado, porém, no momento errado, ele será pouco eficaz. Isso é mais comum, infelizmente, onde as barreiras ao acesso são maiores, que são onde vivem as populações mais vulneráveis.
A Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer (PNPCC), de 2023, já mostrou algum resultado?
Estamos acompanhando os esforços do Governo Federal para priorizar a atenção oncológica na saúde, com a criação de programas estratégicos em uma tentativa de organizar melhor a rede. Pois, como falei, não é só sobre recurso financeiro e estrutura física. Muitas vezes é uma questão de organizar melhor o serviço, incluindo a navegação do paciente oncológico (abordagem multidisciplinar que visa guiar o paciente através do sistema de saúde) para que ele não se perca no meio do caminho, nem demore mais do que precisa.
Um levantamento do TJCC mostra que a implementação da PNPCC apresenta avanços em estados e capitais brasileiras, mas ainda enfrenta desafios para garantir acesso equitativo e de qualidade no SUS. O tempo médio no Brasil foi de 50 dias para o diagnóstico e 75 dias até o início do tratamento, maior do que os prazos previstos pela legislação (30 e 60 dias, respectivamente).
Os resultados também evidenciam diferenças regionais. As maiores dificuldades para o cumprimento dos prazos estabelecidos em lei foram observadas nas regiões Norte e Nordeste, onde muitos pacientes enfrentam longas distâncias até os centros de referência, chegando a levar mais de três dias de deslocamento.
Como as novas terapias vão impactar o cenário do tratamento do câncer no Brasil?
O que veremos daqui para frente é um cenário de desenvolvimento científico cada vez mais acelerado, com novas terapias que prometem melhores resultados clínicos. E, quando não oferecem cura, proporcionam maior sobrevida com mais qualidade para os pacientes. No entanto, essas terapias têm custos extremamente elevados, geralmente muito superiores aos dos tratamentos convencionais.
A incorporação dessas novas terapias exige um planejamento rigoroso, incluindo estudos de custo-efetividade. Também demanda a criação de modelos de financiamento adequados. Afinal, é preciso garantir que elas possam ser oferecidas de forma acessível a todos, assim como definir como essa conta será paga. Não é só o Brasil, mas o mundo inteiro precisa achar uma saída. Mas vale dizer que estamos em uma condição favorável, pois somos um dos poucos países que investem na produção nacional de algumas dessas terapias avançadas.
O que temos de fazer para reverter as estatísticas?
Não é só o desenvolvimento e a incorporação de novas tecnologias. O que realmente pode causar um impacto positivo para mudar essas estatísticas do câncer são três frentes. A primeira é a prevenção, ou seja, o controle dos fatores de risco. Além disso, temos de melhorar a capacidade de realizar os diagnósticos de maneira precoce.
Por fim, não basta que as pessoas sejam informadas sobre os exames preventivos. Elas precisam ser atendidas, ou melhor, “navegadas” com agilidade para diminuir o tempo entre suspeita, diagnóstico e tratamento. Uma vez que PNPCC consiga ser cumprida em todos os estados e municípios, com atenção primária, especializada e coordenada, certamente irá impactar tanto a incidência quanto a mortalidade do câncer no país.