Como saber se um medicamento é seguro na gravidez?

No livro 'A ciência da gestação: passado, presente e futuro', pesquisadora brasileira aborda a participação de gestantes em estudos científicos

Mulher grávida
Foto: Freepik

A declaração do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, sobre uma possível associação do medicamento paracetamol na gestação com o crescimento das taxas de autismo em crianças gerou polêmica no mundo inteiro – e chegou a ser rebatida, inclusive, pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Um dos pontos positivos do embate, no entanto, foi colocar em evidência a participação de mulheres grávidas em pesquisas científicas.

Devemos proteger as mulheres durante as pesquisas, e não das pesquisas em si”, afirmou a cientista Ruth Faden, do Instituto Berman de Bioética da Universidade Johns Hopkins (Estados Unidos), em entrevista à imprensa norte-americana, que repercutiu na revista Nature. O artigo em questão advoga a favor dos testes de medicamentos em gestantes, com o devido controle, em prol da saúde tanto dos bebês quanto das mães. Afinal, como garantir uma gravidez tranquila a uma mulher que sofre de alguma doença crônica, por exemplo, se não há informações claras sobre os efeitos dos medicamentos que ela necessita na formação do bebê?

Não por acaso, tal dilema ético é um dos temas do livro “A ciência da gestação: passado, presente e futuro”, da cientista Rossana Soletti, lançado este ano pela Zahar. A obra traz desde estudos científicos a curiosidades históricas sobre gravidez, como o próprio termo usado para designar malformações do desenvolvimento, teratologia. “Ela tem origem no grego ‘terato’, que significa ‘monstro’. Hoje temos mais cuidado com as palavras, mas nos livros antigos de anatomia, as anomalias anatômicas graves em bebês eram classificadas como monstruosidades”, conta a cientista, que é doutora em ciências morfológicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em entrevista exclusiva à IstoÉ, Soletti discorre sobre os avanços da ciência nesse campo.

Por muito tempo, a placenta foi considerada uma barreira de proteção para o bebê. Hoje, não mais. Poderia explicar essa mudança?

Como contei no livro, essa ideia de que embriões e fetos estariam se desenvolvendo em uma fortaleza que impediria a exposição a componentes tóxicos foi derrubada entre 1958 e 1962 por causa da talidomida. Na época, cerca de 10 mil bebês nasceram com malformações (em membros, ouvido, coração e cérebro) depois que as mães usaram esse medicamento para amenizar os enjoos da gravidez. Essa tragédia, que foi um divisor de águas, serviu de alerta para a necessidade de novos estudos a fim de compreender melhor o processo. A partir daí, descobriu-se que a placenta age mais como um filtro do que como uma barreira. As pesquisas auxiliaram também na elaboração de documentos que passaram a obrigar a realização de testes para avaliar os possíveis efeitos colaterais dos medicamentos nos embriões e nos fetos.

Há períodos da gestação que tendem a ser mais críticos para a ação dos teratógenos, ou seja, de substâncias que possam prejudicar o desenvolvimento do bebê?

Sim, as primeiras oito semanas são cruciais ao desenvolvimento embrionário. Para começar, porque, no início dessa fase, ocorrem tanto a fecundação quanto a implantação do embrião no útero. Além disso, na terceira semana, acontece a formação das camadas germinativas, ou seja, dos tecidos que vão gerar todos os tipos de células que temos (cerca de 200). Outro evento importante que tem início nesse período é a formação do tubo neural, a origem do sistema nervoso. O perigo é que muitas vezes a mulher ainda não sabe que está grávida nessa fase (já que o atraso menstrual normalmente é observado na quarta semana) e pode entrar em contato com substâncias que prejudiquem este processo, como álcool e medicamentos, por exemplo.

Como saber quais medicamentos são seguros durante a gestação?

Durante muitos anos, os riscos dos medicamentos na gravidez foram classificados por um sistema de letras (A, B, C, D e X), criado pela agência norte-americana FDA (Food and Drug Administration). A categoria A incluía aqueles considerados mais seguros, com base em estudos controlados em mulheres grávidas. Enquanto na categoria X, estavam os contraindicados, após estudos em animais ou humanos comprovarem risco fetal. A maioria dos medicamentos estava na categoria B, em que os estudos em animais não indicavam risco fetal, porém não havia estudos controlados em mulheres grávidas. A partir de 2015, essa categorização foi substituída por uma mais detalhada, que inclui os efeitos conhecidos dos medicamentos na gravidez, tanto por meio de estudos com animais como humanos, e na lactação. A nova nomenclatura alerta ainda sobre as possíveis consequências à reprodução, em mulheres e homens. Além disso, para avaliar a segurança de um medicamento, os médicos levam em consideração também aspectos individuais de cada gestante.

É o caso das doenças crônicas, por exemplo?

Isso mesmo. Algumas patologias podem ser controladas com mudança de hábitos, mas outras, não. Vamos supor que uma mulher faça tratamento para depressão. Ao engravidar, a retirada da medicação pode representar mais riscos do que mantê-la. Caso o remédio utilizado por ela seja contraindicado para gestantes, o médico provavelmente irá recomendar outro que seja liberado nesta fase. Cabe ao profissional fazer os devidos ajustes, avaliando a relação risco-benefício.

Como são realizadas pesquisas científicas para avaliação de medicamentos em gestantes?

Não só as gestantes, como as mulheres em geral, foram historicamente excluídas de ensaios clínicos de medicamentos, o que deixou um vazio de conhecimento sobre o efeito dessas substâncias no desenvolvimento embrionário. Mesmo as fêmeas de animais eram deixadas de fora até poucas décadas atrás. Atualmente, porém, a maioria das agências reguladoras, como o FDA, obriga a participação de mulheres nas pesquisas.

Hoje em dia, os medicamentos são testados em modelos animais, geralmente em dois tipos de mamíferos, incluindo fêmeas grávidas. Esses testes são obrigatórios para que sejam observados os efeitos nos embriões e nos fetos de animais e, depois, conforme os resultados, sejam testados em humanos. Mas os ensaios clínicos com gestantes ainda são minoria.

O que ocorre, com frequência, é que em uma pesquisa com milhares de pessoas, incluindo mulheres em idade reprodutiva, algumas das participantes naturalmente vão engravidar. E a partir daí serão estudados os efeitos daquele medicamento nesse público. Foi o que aconteceu com as vacinas contra a Covid-19, por exemplo.

O que podemos esperar do futuro nesta área?

Com a ascensão de novas tecnologias, vemos grandes avanços. Como, por exemplo, os estudos chamados in silico, que são pesquisas realizadas em ambientes de simulação computacional. Elas consistem em programas abastecidos com dados para prever ou simular processos biológicos e químicos, como alterações embrionárias provocadas por uma determinada substância. Assim, aumenta-se a segurança dos testes, antes mesmo de eles serem feitos em animais ou humanos. Recentemente, começaram a surgir também testes em embrioides feitos a partir de células-tronco, que seriam uma espécie de “embrião sintético”. Da mesma forma, vêm sendo conduzidos experimentos com organóides, ou seja, pequenos órgãos também cultivados com células-tronco, semelhantes a uma mini-placenta. Ambos ainda são realizados de maneira experimental, mas é possível que em um futuro breve, essas plataformas possam ser usadas para avaliar os riscos de um medicamento na gravidez.

Com a polêmica recente sobre a associação do paracetamol ao autismo, a participação das gestantes em ensaios clínicos voltou a ser debatida. Qual a sua opinião a respeito?

Eu concordo que temos de proteger as mulheres durante as pesquisas e não das pesquisas. Essa frase compila o que vimos na pandemia da Covid-19. Mesmo as gestantes sendo um grupo de risco, elas foram deixadas de fora dos ensaios clínicos.

Como falo no livro, a gravidez não é um acontecimento raro. As mulheres vão engravidar com frequência, por isso, precisamos ter opções de tratamento para quaisquer que sejam suas necessidades. Em um ensaio clínico, não podemos excluir as gestantes para evitar uma possibilidade hipotética de algum feto sofrer uma alteração e, com isso, deixar centenas de milhares de mulheres e seus futuros bebês em risco. Porque eventualmente essas mulheres vão utilizar esses medicamentos, sejam eles testados ou não, caso precisem. A grande questão, portanto, é que os estudos com gestantes devem ser muito bem pensados e controlados, e não abolidos.