O Prêmio Nobel de Medicina deste ano foi concedido a três pesquisadores que desvendaram um mecanismo chave do sistema imunológico. O trio, formado pelos cientistas Shimun Sakaguchi, do Japão, e a Mary Brunkow e Fred Ramsdell, dos Estados Unidos, conduziu pesquisas fundamentais sobre as chamadas células T reguladoras, que, como sugere o nome, descobriu-se serem responsáveis por regular o sistema imunológico.
Essas pesquisas, realizadas há mais de 20 anos, foram essenciais para pautar a produção de conhecimento nesta área, assim como para o desenvolvimento de tratamentos contra o câncer, doenças autoimunes e rejeição de transplantes. A seguir, entenda como foram feitas as pesquisas que culminaram com o Nobel, os impactos na medicina e o que se espera do futuro da imunologia a partir dessas descobertas.
O que são as células T reguladoras
O sistema imunológico, responsável por proteger o organismo contra vírus, bactérias e outros microorganismos estranhos, é formado por diferentes tipos de células. Entre elas, estão os linfócitos T, produzidos no timo, que são centrais nesse sistema de defesa.
Até o momento, foram identificados ao menos dois tipos de linfócitos T, cada uma com uma atividade diferente no organismo: as células T efetoras, que podem ser auxiliares ou citotóxicas, e as células T reguladoras. A descoberta deste último tipo, em meados dos anos 1990, foi o que rendeu o reconhecimento do prêmio Nobel. As Tregs, como são chamadas, agem como reguladoras do sistema imunológico, impedindo que outras células T destruam tecidos saudáveis do próprio organismo – e por essa razão, também ganharam a alcunha de “guardiãs”.
Este equilíbrio, no entanto, é delicado, como explica a coordenadora do Departamento Científico de Erros Inatos Da Imunidade da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai), Ekaterini Simões Goudouris. “O sistema imune tem a função de defender o corpo de células internas que se proliferam e também contra organismos externos. Porém, quando ele tem uma atuação desenfreada, pode causar alergias, inflamações, doenças autoimunes (como diabetes tipo 1, lúpus e esclerose múltipla, entre outros) ou rejeitar um transplante”, diz.
Quando o sistema imunológico ataca a si mesmo
A descoberta das células T reguladoras, um mecanismo fundamental de tolerância e regulação do sistema imunológico, impulsionou novas pesquisas sobre o tratamento de doenças autoimunes. É o que afirma a imunologista Ana Maria Caetano Faria, membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e professora da de Imunologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
No caso do diabetes tipo 1, por exemplo, o sistema imunológico passa a destruir as células do pâncreas responsáveis por produzir insulina. A partir da compreensão das Tregs, o desafio da ciência agora está na busca de terapias imunorreguladoras para fazer com que elas voltem ao seu papel inicial, ou seja, proteger o organismo.
Este é um dos objetivos da professora Ana Maria, que estuda como a tolerância oral, ou seja, a capacidade natural do sistema imunológico de não reagir a substâncias que não fazem mal ao organismo, como as proteínas da dieta e as bactérias da microbiota, entre outros, pode ser usada como uma forma específica de imunoterapia contra doenças autoimunes e alérgicas. Uma imunoterapia, vale explicar, é um tipo de tratamento que utiliza o próprio sistema imunológico do corpo para combater doenças.
“A tolerância oral ocorre quando o sistema imune, ao entrar em contato com antígenos pela via digestiva, desenvolve uma resposta supressora em vez de inflamatória. Essa resposta é mediada principalmente por células T regulatórias induzidas (iTregs), que produzem citocinas anti-inflamatórias (como IL-10 e TGF-β) e mantêm o equilíbrio entre tolerância e defesa imunológica”, resume a pesquisadora.
O papel das Tregs contra o câncer
As Tregs também desempenharam um papel crucial no desenvolvimento de um dos tratamentos mais modernos contra o câncer, a imunoterapia com inibidores de checkpoint (ou bloqueio de pontos de controle).
Em vez de “atenuar” a função das células reguladoras, como no caso das doenças autoimunes, o objetivo das pesquisas no tratamento do câncer é fazer com que o sistema imunológico ataque os tumores de forma mais agressiva. Isso porque as Tregs se acumulam ao redor dos tumores, liberando moléculas que suprimem a atividade das células T citotóxicas, que são as responsáveis por destruir células cancerígenas. Esse ambiente de imunossupressão permite que o tumor cresça e escape da vigilância do sistema imune.
A imunoterapia com bloqueio de checkpoint, portanto, utiliza medicamentos para “desligar” os freios naturais do sistema imunológico, permitindo que ele ataque as células cancerígenas de forma mais eficaz. A descoberta desse tipo de terapia, aliás, rendeu aos imunologistas James P. Allison e o Tasuku Honjo, o prêmio Nobel de Medicina de 2018.
Como as Tregs podem evitar a rejeição de órgãos transplantados
A identificação das células T reguladoras abriu ainda caminhos para que pesquisadores do mundo todo, inclusive no Brasil, aprimorassem as investigações de transplantes de órgãos. “Nos transplantes, tenta-se colocar no indivíduo um tecido que não é próprio dele, o que faz com que o sistema imune reconheça o órgão como estranho e o agrida para destruí-lo. A célula T reguladora, se estimulada, pode controlar essa função e ajudar na aceitação do órgão”, exemplifica Ekaterini Goudouris, da Asbai.
Essa linha de pesquisa também vem ganhando força no Brasil, com cientistas como Verônica Coelho, do laboratório de imunologia do Instituto do Coração da Universidade de São Paulo (InCor-USP), que investiga como as Tregs podem contribuir para o sucesso dos transplantes de rim.
“Um dos estudos que eu participei mostrou que as pessoas que alcançaram o estado de tolerância operacional (capacidade de um paciente manter um órgão transplantado) tinham uma quantidade maior de células T reguladoras do que as pessoas que tiveram rejeição crônica depois de um transplante. Essas, por sua vez, perderam células T reguladoras”, explica a pesquisadora.
“Isso nos leva a entender que manter os números de células Tregs é importante para manter a tolerância do transplante. É necessário fazer estudos clínicos para confirmar, mas eventualmente isso pode significar uma mudança de protocolos pós transplante para diminuir o uso de drogas imunossupressoras ”, complementa Veronica Coelho.
As drogas imunossupressoras são medicamentos que inibem ou diminuem a ação do sistema imunológico. Elas são usadas, nesse caso, para prevenir a rejeição de órgãos depois de um transplante, porém causam uma série de efeitos colaterais e aumentam a vulnerabilidade dos pacientes.
Novos desafios
Comparado a outras áreas da ciência, como a fisiologia ou anatomia, o campo da imunologia é recente, assim como a genética, por exemplo. Os estudos envolvendo as Tregs no Brasil e no mundo são promissores, mas ainda há alguns desafios para que eles avancem. O principal deles, segundo a imunologista Ana Maria Caetano Faria, da UFMG, se dá no longo processo científico e na demora (que é natural) para que um estudo seja aprovado para testes em humanos.
O outro obstáculo é traduzir o modelo que funcionou em camundongos para os seres humanos. “Nosso grupo consegue produzir células T reguladoras e melhorar a doença autoimune nos animais, e elas funcionam muito bem no início da doença. Em humanos, isso nem sempre é possível, já que os pacientes procuram tratamento em um estágio mais avançado da doença”, pontua a professora da UFMG.
Enquanto a ciência busca novas respostas, a pesquisadora comemora a visibilidade que o Nobel trouxe ao tema. “Esse prêmio é um reconhecimento de que vale a pena investir em pesquisas sobre células T reguladoras. Além do fomento à pesquisa, acredito que esses prêmios ajudam a chamar atenção de jovens pesquisadores a se interessarem nesta área, que ainda é muito promissora”, conclui.