Érica Quaglia, atriz, tem 49 anos. Há 17, descobriu um caroço em uma das mamas. Começava ali um longo processo, em que ela redescobriria seu corpo, enquanto lutava contra o câncer de mama. As primeiras duas cirurgias foram feitas quando ela estava na faixa dos 30 anos. Mais recentemente, depois de muito relutar, ela precisou retomar o tratamento porque o tumor estava de volta. Desta vez, foi necessário fazer a retirada completa da mama esquerda.
Aceitar todo esse processo, antes mesmo de passar por ele é complexo. “Quando uma pessoa é diagnosticada com câncer há, sim, uma instauração de luto pela perda da saúde”, compara a psicooncologista Glaucia Pina, especialista em luto, perdas, crises e emergências. A mama, especificamente, é um órgão com diversos significados.
“Ela representa a mulher em si, além de prover alimento aos filhos, por exemplo. Com isso, além de toda a questão física trazida pelo diagnóstico de câncer, o emocional da mulher sofre com o sentimento de perda de um importante simbolismo feminino”, afirma a psicooncologista Glaucia Pina.
Mãe de dois filhos, Diego, 28, e Isadora, 19, Érica relembra a trajetória percorrida. A partir de sua experiência, escreveu também uma peça, ”A mama, a mãe e a sociedade”. Confira o relato exclusivo, a seguir.
A descoberta do câncer de mama
“O primeiro alerta foi um pequeno caroço na mama esquerda, que não doía e nem incomodava, mas resolvi verificar. Era 2008 e eu tinha 31 anos na época. Passei por uma cirurgia para tirar um quadrante da mama. Dois anos se passaram e precisei voltar para a sala cirúrgica e retirar outro quadrante, agora da mama direita. Recebi o diagnóstico e soube que, assim como da primeira vez, eram tumores malignos. Depois das cirurgias, fiz quimioterapia, como prevenção.
Eu sofri muito nesse processo e me senti sozinha. Tanto que tudo o que eu quis foi deixar aquilo no passado, sem olhar para trás. Só que mais de uma década depois, o meu pesadelo tinha voltado.
Lá entre 2008 e 2010, nas minhas primeiras cirurgias, o tratamento era bem menos humanizado. As marcas daquele período me machucavam com tanta força que eu simplesmente optei por ficar com o nódulo, mesmo com toda a dor.
Eu me forçava a acreditar que ia passar. Achei, por um bom tempo, que poderia viver assim, mas o tumor cresceu e a minha energia foi me limitando. Com medo de buscar ajuda médica, eu tentava encontrar métodos para não sentir dor, o que era impossível.
Então, finalmente aceitei que não dava mais. Assim que o oncologista me viu, fui imediatamente encaminhada para a internação. Desta vez, no entanto, a história foi outra. O médico me ouviu. Abriu-se ali um novo diálogo sobre o câncer e a minha forma de viver.”
Altos e baixos do tratamento do câncer
“Fui abraçada por um tratamento intenso para diminuição do tumor, com doze sessões de quimioterapia. Aí sim, poderia passar pela cirurgia da retirada radical da mama esquerda, a mastectomia. Desta vez, porém, eu entendia todo o processo, ao lado de uma equipe médica que me acolhia sem julgamentos. Fez toda a diferença.
Eu estava tão impactada pelo que tinha passado nas duas cirurgias anteriores, que eu sentia mais medo de morrer por causa do tratamento do que de morrer por não me tratar. Finalmente, depois de todas as sessões de quimioterapia, eu retiraria totalmente a mama esquerda e, com ela, o tumor.
A mastectomia não é fácil. Retirei 18 linfonodos. Foi uma cirurgia bem radical. Até hoje, não posso, por exemplo, pegar mais de 5 quilos do lado esquerdo, sem que meu braço inche. Também não consigo tocar muito meu lado esquerdo. É como se estivesse anestesiado, sabe? Não sei o que seria se tivessem retirado já de uma vez duas mamas, lá em 2010, e colocado uma prótese. Embora no tratamento de um câncer exista urgência, acredito que tudo tenha acontecido em seu momento.”
A vida após a mastectomia
“O pós-cirúrgico é um renascimento repleto de fortes decisões. O corpo oscila. A gente fica sem mobilidade, toma muitos remédios e precisa de ajuda para tudo, seja para ir ao banheiro, seja para comer.
Com o tempo, a náusea foi passando. Hoje, três anos depois, busco estar sempre em movimento – mas tenho de respeitar meu corpo, porque ele tem um limite, tanto de mobilidade, quanto de energia.
Comecei a fazer fisioterapia e pude articular melhor meu braço. Também passei a praticar exercícios, até onde era saudável, para não me frustrar. Meu corpo pode tudo, mas tem um outro tempo de conquista.
Tem gente que, ao ouvir o que aconteceu, olha direto para o meu peito. Disfarço, para que a pessoa não fique sem graça. Isso acontece com homens e com mulheres. Eu não uso prótese, entretanto. Prefiro trabalhar isso com arte. Sei que, se eu transmitir essa beleza para mim e para o outro, vai ser natural.
Sobre a mama, é um antes e um depois, né? O tempo vai passando e vamos nos adaptando. Mais do que uma personalidade nova, é um conceito estético novo, é uma descolonização do meu corpo. Ele vai trabalhar de outra forma, vai se mexer de outro jeito. Nada de ficar pensando ‘‘Ai, tenho um defeito’, ‘Ai, eu não consigo fazer o que a minha amiga faz’ ou ‘Quem vai ter desejo por mim?’. É claro que tudo isso está envolvido, daí a importância do amor-próprio.
Na ioga, tentava ficar de ponta-cabeça, mas me enjoava. Eu saía triste da aula. Já atualmente busco o que meu corpo deseja. Não vou ficar sedentária, mas vou caminhar mais devagar e focar na respiração. Sempre trabalhei com o corpo, já que sou atriz. Os pré-julgamentos ou palpites acontecem, só que ele está cada vez mais blindado para isso. Quando vou fazer um espetáculo, em vez de uma hora e meia, fico 40 minutos para evitar passar mal. Saúde, para mim, é me respeitar.
Cada cirurgia tem um contexto diferente. No meu caso, tive de tirar uma parte das costas para fazer um enxerto. Isso afeta o movimento e o equilíbrio. Fiquei bem chocada quando fui pegar uma bicicleta. Tentei anos depois da mastectomia e caí para o lado. Não conseguia. Por segurança, adquiri um triciclo.
Dói ver quando não posso mais fazer algo que todo mundo faz. Então, penso que dá para fazer, sim, mas a minha medida é diferente da do outro.”
Adaptação por meio da arte
“Tento semear essa ideia por onde passo. Muitas pessoas acabam encontrando na minha arte o que estava engasgado. Por isso, a minha peça é uma observação profunda. É muito importante para as mulheres que estão passando por algo parecido neste momento ter apoio terapêutico, além de saber que cada processo é único.
Nasci com peito. Até três anos atrás, eu tinha esse peito. Hoje, ele não existe mais.
Existem, por outro lado, essas limitações. Acredito que tenho de olhar para essa nova forma e os benefícios que ela me traz, como me livrar daquela dor insuportável e de uma doença que poderia tirar a minha vida.
A gente só entende mesmo como é, quando retira a mama de fato. No meu caso, colocar uma prótese nunca foi um desejo. Tatuagem, já pensei, mas o local ficou tão sensível… Quem sabe daqui a alguns anos? Hoje, minha maior tatuagem são as cicatrizes. Fiz uma publicação nas redes sociais, mostrando a cicatriz e me senti tão bonita…
Escrever sobre o assunto foi um grande alívio também. Tudo o que passei foi válido. Hoje, viver sem a mama é uma superação. É um corpo que eu amo, é um corpo que eu admiro, é um corpo que me permite estar ao lado de todas as pessoas que eu amo e que ainda vou amar e conhecer.”