O Brasil já foi referência mundial em vacinação. O Programa Nacional de Imunização (PNI), do Ministério da Saúde, chegou a ser considerado modelo pela Organização Mundial de Saúde (OMS), atingindo coberturas vacinais acima da taxa ideal, de 95%, para quase todas as vacinas infantis – algo que muitos países desenvolvidos não conseguem realizar. Mas, infelizmente, esta realidade mudou para pior nos últimos anos. Após décadas de sucesso nas campanhas, o país voltou a enfrentar o risco de reintrodução de doenças que já estavam erradicadas ou controladas.
A cobertura vacinal tem caído e preocupado especialistas. Em 2023, a taxa média nacional de vacinação infantil ficou abaixo de 80%, de acordo com dados do Ministério da Saúde – bem longe dos 95%, número que antes costumava ser atingido e superado. A imunização contra a poliomielite atingiu 77%, enquanto a tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola) ficou em 84%, distante do patamar seguro.
A tendência, contudo, não é exclusividade do Brasil. Segundo a OMS, as notificações de casos de sarampo cresceram 79% no mundo, entre 2022 e 2024. Além disso, o número de mortes causadas pela doença dobrou. O vírus havia sido eliminado na América em 2016, mas milhares de casos voltaram a ser registrados nos Estados Unidos, Canadá, México e Argentina, reacendendo o alerta.
Sempre à espreita
O pediatra e infectologista Renato Kfouri, presidente do Departamento de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e presidente da Câmara Técnica de Eliminação do Sarampo do Ministério da Saúde, ressalta a diferença entre erradicação, eliminação e controle. “A única doença que foi erradicada, na verdade, é a varíola”, aponta. “Outras foram eliminadas, ou seja, não há mais circulação dos vírus, mas eles não desapareceram do planeta”, explica. Nas Américas, isso acontece com doenças como poliomielite, sarampo, rubéola, tétano neonatal e rubéola congênita.
“A poliomielite, por exemplo, hoje, está restrita a dois países — Afeganistão e Paquistão”, afirma. “Mas existe a pólio derivada do vírus da vacina oral, que é aquela da gotinha. Em algumas situações, o vírus pode sofrer reversão de virulência e voltar a causar a doença em quem não está vacinado. Hoje, temos mais casos de pólio vacinal do que de pólio selvagem”, afirma Kfouri.
Em 2024, o Brasil suspendeu o uso da vacina oral contra a pólio, substituindo-a por versões injetáveis, seguindo orientação da OMS. “É a recomendação mundial para parar de jogar o vírus vivo no ambiente”, reforça o médico.
Sarampo: “o primeiro a voltar”
Entre todas as doenças já eliminadas, o sarampo é a que mais preocupa especialistas. Extremamente contagioso, já que uma única pessoa infectada pode transmitir o vírus para até 18 outras, costuma ser o primeiro a reaparecer quando há queda na cobertura vacinal.
A pediatra Mônica Levi, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), reforça que para manter a eliminação do vírus é necessário uma alta cobertura vacinal. “Hoje, nossa maior ameaça é o retorno da circulação do vírus do sarampo no país”, alerta. “A vacinação exige metas altas de cobertura, não só nas crianças. É importante vacinar também os adultos, porque eles podem adoecer e manter o circuito de transmissão”, reforça.
Ela lembra que, há alguns anos, o Brasil já teve surtos recentes provocados por casos importados, quando viajantes trazem o vírus de outros países. “A imunidade de rebanho é fundamental. A proteção coletiva só é alcançada quando quase toda a população está imunizada, e estamos longe disso”, diz.
Embora o Brasil tenha recuperado, em novembro de 2023, o certificado de eliminação do sarampo, perdido em 2018, os especialistas recomendam cautela. “Justo quando conseguimos a recertificação, as Américas começaram a viver grandes surtos. México, Canadá e Estados Unidos se tornaram epicentros, com dezenas de mortes. É natural que pessoas com sarampo entrem no Brasil — e o que precisamos fazer é monitorar, isolar casos suspeitos, vacinar contatos e manter a cobertura alta para impedir que o vírus volte a circular”, afirma Kfouri.
Desigualdade e desinformação
Para a médica Isabella Ballalai, vice-presidente da SBIm, a desinformação e a falsa sensação de segurança são os maiores inimigos da prevenção. É um paradoxo, mas a própria eficiência das vacinas gera hesitação em parte da população. “Ninguém mais vê casos graves de sarampo e isso dá a impressão de que a doença não existe. Mas ela está ali, circulando em outros países e esperando brechas para voltar”, afirma. “Quando a cobertura cai, o vírus encontra caminho livre”, alerta.
O Brasil é um país de contrastes, e isso também se reflete nas campanhas de vacinação. “Melhorar as coberturas vacinais é desafiador em um país com realidades tão distintas”, diz Kfouri. “O que faz uma família não se vacinar em São Paulo não é o mesmo motivo que impede uma no interior do Pará ou na fronteira com a Venezuela. Há problemas de acesso, horários de postos, falta de abastecimento e, claro, desinformação”, acrescenta.
Ballalai destaca que ainda existem no Brasil grupos de pessoas não vacinadas, principalmente em comunidades urbanas com baixa adesão à imunização ou em áreas de difícil acesso. “Temos regiões com coberturas abaixo de 70%. Isso é um prato cheio para a volta de doenças que já estavam controladas”, alerta.
Além do sarampo, doenças como difteria, tétano e coqueluche continuam circulando em alguns lugares do mundo. “Estamos vendo surtos de coqueluche nos países vizinhos e até na Europa. A vacinação é importante não só pela proteção individual, mas para evitar a transmissão a bebês ainda não vacinados, por exemplo”, diz Levi.
Para Kfouri, a vigilância epidemiológica é um dos pilares para a solução do problema. “Toda criança com paralisia flácida (perda do tônus muscular) precisa ser investigada para descartar poliomielite. Manter a eliminação depende dessa vigilância ativa”, afirma.
Essa vigilância constante deve ser acompanhada de um compromisso permanente de imunização de toda a população. Afinal, não existe faixa etária sem recomendação de vacina. Como destaca o infectologista, há calendários específicos para crianças, adolescentes, gestantes, adultos e idosos. “É fundamental que a vacinação seja vista como um cuidado contínuo, e não algo que termina na infância”, conclui Kfouri.