A série “Tremembé”, lançada pela Amazon Prime no último dia 31 de outubro, superou todas as expectativas, inclusive da própria plataforma. Rapidamente após a estreia, ficou na primeira posição entre todas as produções do streaming. Em menos de uma semana, tornou-se a produção mais assistida de toda a história da plataforma no Brasil. O livro “Tremembé: o presídio dos famosos” (Editora Matrix), em que a série foi baseada, está entre os dez mais vendidos da Amazon. Nas redes sociais, só se fala disso. Mas, afinal, de onde vem esse fascínio coletivo por histórias tenebrosas, de crimes cruéis, que aconteceram de verdade?
Para a neuropsicóloga Aline Victor Lima, coordenadora do Núcleo de Psicologia Forense da BRAPSI, o interesse não é novo — nem tão mórbido assim. Se você se inclui entre os fãs do gênero, que consomem avidamente séries, filmes e livros sobre esse tipo de assunto, saiba que não há razões biológicas e culturais. “O fascínio por crimes acompanha a humanidade há séculos”, explica a especialista. “Das execuções públicas às manchetes de jornal e agora às séries documentais, a violência sempre mobilizou medo e curiosidade ao mesmo tempo. É um paradoxo que diz muito sobre como o cérebro humano funciona”, aponta.
Um gosto de medo, mas com segurança
De acordo com Aline, o interesse por crimes é um fenômeno biopsicossocial. “Ao acompanhar uma narrativa criminosa, o indivíduo busca entender o que leva alguém a transgredir regras sociais e morais e, com isso, reafirma seus próprios parâmetros de segurança, empatia e justiça”, afirma.
Essa reação tem uma base neurológica. “O sistema límbico [parte do cérebro que controla as emoções, a memória e os comportamentos] reage à ameaça com a liberação de adrenalina e cortisol, enquanto o córtex pré-frontal [responsável por funções mentais mais sofisticadas e tomadas de decisões] interpreta que não há perigo real”, detalha a psicóloga. “Essa combinação gera uma resposta de excitação controlada, em que o indivíduo sente o impacto emocional do risco, mas permanece protegido. É o medo sendo experimentado num ambiente seguro”, continua.
Por que é difícil parar de assistir?
O público costuma “maratonar” esse tipo de série, mesmo quando o conteúdo é angustiante. Mais uma vez, a explicação está no próprio funcionamento cerebral. “O cérebro humano busca previsibilidade e fechamento cognitivo. Quando uma história apresenta elementos de ameaça e mistério, entramos em um estado de alerta, que só se encerra quando o desfecho é compreendido”, afirma Aline Victor Lima.
Este processo está ligado à liberação de dopamina, neurotransmissor responsável pela sensação de prazer e expectativa. “Cada nova pista, cada revelação, gera uma pequena descarga de dopamina, o que nos mantém atentos e engajados. É o mesmo mecanismo de reforço ativado em investigações criminais — e é por isso que é tão difícil parar de assistir antes de saber a verdade”, esclarece a psicóloga.
Pausa na série para investigar
Você também pausa a série toda hora para pesquisar melhor algum detalhe sobre a história real na internet? “Esse comportamento é completamente normal”, garante Aline. “O cérebro busca coerência. Quando há lacunas de informação, ele tenta preenchê-las”, acrescenta.
A busca, segundo a psicóloga, vai além da curiosidade: “Ao investigar o caso fora da tela, o espectador amplia seu repertório sobre comportamento criminoso, violência e sistemas de punição. Além de ser uma forma de aprendizado social e emocional, é uma tentativa de compreender como a justiça reage diante do mal.”
A maioria dos espectadores é mulher
Embora o público do true crime seja diverso, há pesquisas que indicam que a maioria dos espectadores é mulher. Um estudo feito nos Estados Unidos, pelo YouGov, mostrou que 58% das mulheres afirmaram gostar de conteúdos sobre crimes verídicos, contra 42% dos homens. Já outra pesquisa publicada pela Universidade de Illinois, também nos Estados Unidos, apontou que entre os ouvintes de podcasts focados em true crime, 73% são mulheres. No Brasil, ainda não há dados específicos sobre o tema, mas acredita-se que a tendência, provavelmente, se repete.
“Para muitas mulheres, o true crime cumpre uma função simbólica de sobrevivência. As narrativas de perseguição e violência funcionam como versões contemporâneas dos contos de fadas — histórias que expõem o perigo, mas também oferecem compreensão e justiça”, acrescenta Aline Victor Lima.
De certa forma, serve como uma ferramenta de autoproteção. “Ao assistir, muitas mulheres se informam, identificam padrões de risco e aprendem, ainda que de forma implícita, estratégias de defesa. É o medo transformado em conhecimento”, explica a psicóloga.
Quando o fascínio extrapola
O interesse por true crime, por si só, não é motivo de preocupação. Trata-se de uma curiosidade natural sobre o comportamento humano. Mas há casos em que o consumo pode, sim, se tornar excessivo. “Quando a pessoa começa a apresentar insônia, ansiedade ou hipervigilância — ou passa a evitar lugares e situações comuns por medo —, o cérebro pode estar reagindo como se o perigo fosse real”, explica a especialista da BRAPSI.
O limite é quando o conteúdo deixa de ser informativo ou cultural e passa a gerar desgaste emocional. “Se o consumo interfere no sono, no humor, no desempenho profissional ou na socialização, é hora de repensar. Nesse ponto, a escuta clínica pode ajudar a restabelecer equilíbrio e autocontrole emocional”, conclui. No tribunal do entretenimento, o veredicto é claro: true crime pode ser fascinante, mas o autocuidado é a melhor defesa.