Durante décadas, o Brasil foi uma das maiores referências globais em vacinação, graças à criação do Programa Nacional de Imunizações (PNI), em 1973. Com ele, o país chegou a eliminar doenças graves, como a poliomielite, e a manter outras, como o sarampo, sob controle. No entanto, nas últimas duas décadas, este cenário tem mudado – para pior. A cobertura vacinal sofreu quedas, que atingiram todas as faixas etárias, incluindo a dos adultos.
As consequências são preocupantes. Em 2021, o Brasil teve o menor índice de cobertura vacinal em um período de 20 anos. A média nacional chegou a apenas 52,1%, segundo informações do Observatório da Atenção Primária Saúde, da Umane, uma organização sem fins lucrativos focada no fomento à saúde pública.
Apesar de ser um dos países que oferecem o maior número de vacinas de forma gratuita à população, por aqui, a adesão entre maiores de 20 anos é baixa. É comum que os pais acompanhem o calendário de vacinação dos filhos desde a fase de recém-nascidos até o final da infância. Ao chegar na adolescência, porém, as vacinas passam a ser menos frequentes. Já na fase adulta, é raro lembrar de atualizar alguma dose, exceto em casos específicos, como pessoas com comorbidades, gestantes e idosos.
Para especialistas, o principal motivo é a falta de informação. “Sempre foi um desafio enorme vacinar adultos. Ainda existe a cultura de que vacina é coisa de criança”, explica a infectologista Mônica Levi, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm). “Muitos adultos não recebem as vacinas recomendadas e disponíveis para a faixa etária simplesmente por falta de recomendação ou por desconhecimento de que deveriam estar com a vacinação em dia”, alerta.
Quais vacinas os adultos precisam tomar?
No calendário do PNI, as vacinas de rotina para adultos, todas disponíveis gratuitamente no SUS, são:
dT (dupla adulto) – reforço contra difteria e tétano a cada 10 anos;
Hepatite B – três doses, caso o esquema não tenha sido completo na infância;
Tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola) – duas doses até os 29 anos e uma dose até os 59 anos;
Febre amarela – dose única, recomendada em todo o país.
A ausência de dados consolidados de cobertura vacinal para adultos dificulta uma análise mais assertiva da situação. Segundo Levi, o PNI se concentra nas coberturas de crianças, adolescentes e idosos. “Para adultos, o sistema de informação ainda é fragmentado. Não existe um relatório nacional sobre o percentual de adultos com todas as vacinas recomendadas em dia”, afirma.
O calendário da SBIm é mais amplo do que o PNI. A entidade recomenda também a vacinação anual da influenza, a pneumocócica, a herpes-zóster (a partir dos 50 anos), além de vacinas como HPV, meningite ACWY e B, varicela e dengue, de acordo com idade e condição clínica. Estes imunizantes, de modo geral, são oferecidos para adultos fora dos grupos prioritários somente em campanhas específicas, porém, podem ser encontrados na rede privada. “O calendário do adulto é complexo porque vai dos 20 aos 59 anos, e inclui diferentes situações. Mas o princípio é o mesmo: o adulto precisa manter o sistema imunológico estimulado e atualizado”, reforça a infectologista.
Doenças erradicadas ou controladas podem voltar
Depois de quase uma década livre de sarampo, o Brasil voltou a registrar surtos da doença, desde 2018. Para a presidente da SBIm, este é um alerta claro da importância da vacinação entre adultos. “Nossa maior ameaça é o retorno da circulação do vírus do sarampo no país. A vacinação exige metas altas de cobertura, não só nas crianças. É importante a imunização também dos adultos, porque eles podem adoecer e manter o circuito de transmissão”, pontua Levi.
Outra preocupação é a coqueluche, que vem ressurgindo em países vizinhos e na Europa. “A vacinação de conviventes de recém-nascidos é altamente desejável, porque o risco de óbito e complicações graves em bebês é elevado”, afirma a médica.
Vacina mRNA contra o câncer
A proteção como já conhecemos é motivo suficiente para manter a vacinação em dia. Mas novas descobertas são promissoras e sinalizam benefícios ainda maiores. Um artigo publicado na revista Nature em outubro deste ano, por exemplo, trouxe uma notícia animadora: cientistas mostraram que vacinas de mRNA desenvolvidas para o combate à covid-19 ativam mecanismos de defesa que também melhoram a resposta imunológica contra o câncer.
Em modelos experimentais, as vacinas estimularam a produção de interferon tipo I e células CD8+, que são proteínas importantes do sistema imunológico. Esse efeito tornaria os tumores mais sensíveis a terapias imunológicas. O estudo sugere que a vacinação em adultos pode modular positivamente o sistema imune, mesmo fora do contexto de infecção. Essas descobertas reforçam o papel da imunização como um estímulo amplificado para os mecanismos de defesa do corpo.
Fake news ainda atrapalham vacinação no país
Para a pediatra Isabella Ballalai, que atua em programas de imunização há mais de 30 anos, o comportamento vacinal está diretamente ligado à percepção de risco. “Se eu não me vejo em risco, não adianta dizer que morreram ‘tantas’ pessoas. Eu não vejo motivo para me vacinar. Mas quando há um surto ou uma pandemia, todo mundo corre para o posto”, diz a especialista, que atualmente é diretora da SBIm.
Ballalai cita exemplos emblemáticos: “Na epidemia de febre amarela, tínhamos 40% de cobertura e, de repente, passaram a se formar filas quilométricas. Faltou vacina. Na pandemia de covid-19, o brasileiro queria ser vacinado. Quando o risco é percebido, a adesão cresce rapidamente”.
As redes sociais se tornaram terreno fértil para boatos e fake news sobre vacinas. De acordo com um estudo recente da Fundação Getúlio Vargas, o Brasil lidera a desinformação sobre vacinas na América Latina e concentra 40% desse tipo de material na rede social Telegram. Para contornar o problema, Ballalai defende uma comunicação mais empática e próxima da realidade das pessoas em diferentes meios. “Falar apenas sobre o risco da doença não é suficiente. Precisamos comunicar de forma que as pessoas se sintam parte da solução. Informação confiável, acessível e contínua é a chave”, sugere.
Cuidado coletivo
A vacinação de adultos é um ato individual que gera impacto coletivo. Um adulto vacinado protege crianças, idosos e imunossuprimidos, interrompendo cadeias de transmissão. “A vacinação de adultos é fundamental não só para proteger quem toma a vacina, mas também quem está ao redor”, ressalta a infectologista Mônica Levi, da SBIm. “Manter a imunização em dia é um ato de responsabilidade social”, acrescenta.
Recuperar a cultura vacinal é um desafio global. Um estudo publicado na revista científica Lancet neste ano mostrou que a vacinação de crianças contra doenças graves está diminuindo em todo o mundo. O Brasil dispõe de um sistema público de saúde estruturado, mas precisa reaproximar o cidadão da ciência e das campanhas de prevenção.
Outra adversidade a ser superada é o acesso. “Vacinar adultos exige conveniência”, afirma Ballalai. Para ela, embora impliquem mudanças estruturais, algumas soluções envolveriam a criação de campanhas específicas para adultos, a utilização de locais de trabalho, universidades e espaços públicos como pontos de vacinação, e o fortalecimento do registro digital de doses na Rede Nacional de Dados em Saúde.
“A experiência da covid trouxe duas coisas: chamou atenção para a importância das vacinas e, ao mesmo tempo, trouxe muita desinformação”, diz Ballalai. “Precisamos equilibrar essa balança com informação confiável e uma comunicação que toque as pessoas”, completa a médica.